Fenômenos Psicológicos Na Tradução Para Dublagem

Imersão

O começo do meu contato com a leitura foi com gibis. Maurício de Souza e Walt Disney, já com tenros cinco anos de idade. Comecei aprendendo as primeiras sílabas com a minha mãe, dona de escola infantil, e treinava a leitura com esses personagens maravilhosos. O primeiro livro que me lembro ter consumido foi “O Bonequinho De Massa”, de Mary Buarque. Foi um prêmio que ganhei na primeira série, no Externato São João, em Campinas, onde estudei até a oitava. Um reforço positivo que a escola usava como artifício behaviorista para incentivar a leitura. O livro foi entregue com todas as pompas, dentro de um envelope bege, pelo então diretor Pe. Gilberto. Na leitura da obra, tive uma sensação estranha enquanto devorava a história do desobediente Juquinha, que esperou os pais saírem para fazer um bonequinho de massa de pastel na cozinha, algo totalmente subversivo e revolucionário. Mal sabia Juquinha que o bonequinho ganharia vida, e mal sabia Mary Buarque que seu livro causaria sinapses interessantes no meu cérebro.

Pouco tempo depois, meus pais chegaram com as obras completas do “Sítio do Pica Pau Amarelo”, de Monteiro Lobato, quinze volumes de literatura brasileira infanto-juvenil de primeiro nível. Tratei de enfiar o meu nariz nas “Reinações de Narizinho” e um admirável mundo novo surgiu no meu pequeno mundinho terreno. A sensação que tive com “O Bonequinho De Massa” voltou mais forte ainda. Agora era uma espécie de semitranse, uma viagem parado, ou deitado, que sempre foi minha posição preferida para leitura. Nos poucos momentos em que saía do mesmerismo, a percepção era a de que eu estava dentro do livro, dentro da história, observando todos os acontecimentos e diálogos escondido atrás de uma pedra ou uma árvore, ou algo que houvesse no cenário, mas sem interferir nos eventos. Era praticamente um antropólogo mirim praticando o método do estranhamento e distanciamento dentro de um universo de fantasia. Só que, na verdade, era a minha primeira experiência com a imersão.

A imersão é um dos fenômenos imprescindíveis, que precisam acontecer para que o resultado final de uma tradução criativa seja satisfatório. Traduções como a literária ou para dublagem precisam da imersão mesmerizante do tradutor com a obra, seja um livro, um filme, uma série ou uma animação. É a partir dela que o profissional vai conseguir absorver o máximo da compreensão da atmosfera, dos personagens e suas idiossincrasias, do jeito de falar, de gesticular, enfim, do subtexto, daquilo que está implícito no conteúdo de uma obra criativa. Quando o tradutor não atinge a imersão, pode esperar que os diretores ou produtores do estúdio virão com os clássicos, “o texto está duro” ou “está literal”. Na verdade, isso quer dizer que você não teve o mergulho semi-hipnótico necessário para alcançar a fluidez, e pode se dar por diversos motivos: cansaço, não gostar do tema, humor no momento, falta de repertório para aquele determinado assunto, transferência obra-tradutor (disso trataremos em outra publicação), entre outros.

Os estudos sobre estados hipnóticos passaram por Mesmer, que conseguia até mesmo realizar cirurgias sob anestesia hipnótica, embora, obviamente, ainda não conseguia explicar seus mecanismos no século 19, e depois por nomes como Braid, Esdaile, Pavlov, Charcot, Freud, que aprendeu com Charcot, Elman e Ericksson, todos descobrindo algo a mais ou a menos até chegarmos no conceito do Dr. Sydney James Van Pelt, dizendo que

“a hipnose é uma superconcentração da mente. Normalmente, a mente se ocupa de vários estímulos ao mesmo tempo; no estado de hipnose, a concentração se dá apenas em uma única coisa, mas em um grau mais elevado do que o estado comum.”

Pelt, 1949

E é o conceito de Pelt que queremos na função de tradutores.

Infelizmente, não existe técnica para conseguir a imersão. Não fosse o amor materno ensinando a ler, a sorte do primeiro livro ter um texto bom o bastante para a idade, a proposta educacional do Externato São João com seus reforçadores positivos no incentivo à leitura e a ação dos pais em reforçar mais ainda levando livros interessantes para casa, talvez o treino necessário para a imersão nunca acontecesse. São muitas as variáveis que levam alguém a gostar da leitura em nível de estado de sugestão. Aí é trabalho do nosso bom e velho amigo acaso, criador de todas as coisas.

Portanto, colegas, mergulhem, divirtam-se e nunca se esqueçam que tradução é arte.

Para Além Do Fim Da Dublagem

Muito tem se falado, em tom de hecatombe, que a dublagem está perto do fim devido às recentes tecnologias que surgiram fazendo estripulias com vozes e rostos, prometendo que os atores originais “falem” as várias línguas estrangeiras dos países que importam os conteúdos audiovisuais. De fato, impressiona a precisão desses programas e aonde eles chegaram atualmente, causando um frisson no universo daqueles envolvidos de ponta a ponta no universo da dublagem.

Mas nem tanto ao mar nem tanto à terra. A questão não é tão simples. O pavor já se instala no entendimento ficcional que temos de “Inteligência Artificial”. O David de Michael Fassbender em “Alien: Covenant” solicitando “A Entrada Dos Deuses Em Valhala” de Richard Wagner pronto para destruir os colonos humanos ainda está longe de chegar, se é que vai chegar. Valdemar W. Setzer, Professor Titular Sênior do Departamento de Ciência e Computação da USP diz que

“…não se pode dizer que uma máquina aprende. Para ‘inteligência artificial’, uma denominação correta poderia ser ‘simulação de comportamentos humanos’… Para ‘aprendizagem de máquina’, poderia ser ‘programas adaptativos'”.

(Setzer, www.ime.usp.br/~vwsetzer)

E para Piaget, biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço, considerado um dos pensadores mais importantes do século 20, “a inteligência é o que você usa quando não sabe o que fazer”. “Ele descobriu que os princípios da nossa lógica começam a se instalar antes da aquisição da linguagem, gerando-se através da atividade sensorial e motora em interação com o meio, especialmente com o meio sociocultural. Segundo a Teoria da Aprendizagem de Piaget, a aprendizagem é um processo que só tem sentido diante de situações de mudança. Por isso, aprender é, em parte, saber se adaptar a estas novidades”. (https://amenteemaravilhosa.com.br/piaget-teoria-aprendizagem/)

Ora, máquinas, sem exceções, precisam saber o que fazer. Elas são interpretadoras de códigos binários (zeros e uns). Ainda, segundo Setzer, o aprendizado de máquina “trata-se de uma técnica de dar a um programa uma enorme quantidade de conjuntos de dados de entrada e de saída; o programa então, em uma fase denominada de ‘treinamento’ (novamente uma denominação antropomórfica indevida, pois deveria ser aplicada apenas a seres humanos e a animais), calcula parâmetros para transformar um conjunto de dados de entrada em um conjunto de dados de saída correspondente, também fornecido ao programa. Posteriormente, depois de muitos casos desses, dá-se um novo conjunto de dados de entrada, obtendo-se então dados de saída que devem se aproximar o máximo possível do que seria esperado. Trata-se, portanto, de um problema de otimização matemática: diminuir o erro dos dados de saída em relação ao que seria de esperar.” (Setzer, www.ime.usp.br/~vwsetzer)

Ou seja, a aprendizagem de máquina é pura e simplesmente matemática. Quando o programa não sabe mais o que fazer, falta-lhe dados, que só são fornecidos com mais intervenção humana. Programas não têm os estímulos do meio sociocultural, a não ser que sejam alimentados por humanos via dados, o que impossibilita a criação de mais esquemas e mais aprendizado. A máquina não é inserida na cultura.

Mas e a dublagem nisso tudo? Por mais que questões técnicas como labial, isocronia e inflexões cheguem a um nível cuja ilusão consiga de fato enganar os espectadores, existe um sem número de fatores relevantes a serem considerados. Ora, a melodia de uma ironia ou um sarcasmo na fala de um brasileiro do Rio de Janeiro, por exemplo, é diferente daquela de um texano, ou de um inglês, mais ainda de um russo ou alemão. O humor é diferente mesmo dentro do nosso próprio país. A dublagem não é meramente a transposição textual lida de um determinado conjunto de frases. Daí a obrigatoriedade dos profissionais da área serem atores. O termo “versão brasileira” não é utilizado à toa. Por mais que um programa de computador consiga fazer o Jack Nicholson falar português automaticamente usando as próprias inflexões do ator, há de se causar estranheza as inflexões do português de um brasileiro em cima de alguém que, no original, esteja falando inglês americano. O buraco é mais embaixo.

Já na tradução para dublagem, a situação se complica e fica mais tensa ainda. A promessa é colocar a transcrição do texto original no programa e, “tcham”, o feitiço está feito. O buraco vai ficando cada vez mais lá embaixo. Dizem que os melhores programas de tradução automática da atualidade conseguem uma precisão de 90 por cento para as línguas mais fáceis, e o português nem está entre elas, embora também não esteja entre as mais difíceis. Só que tradução envolve escolhas, envolve repertório, envolve sensibilidade, a questão é semântica, não sintática. O tradutor precisa compreender os personagens, interpretá-los e, através da imersão, que é um dos fenômenos psicológicos da tradução para dublagem, remeter-se à sua bagagem de vida. Ele vai se lembrar do tiozão do clube de campo que falava e brincava usando determinadas expressões, da tia Zilda que fala assim ou assado, do amigo da adolescência, no boteco, que fazia todos rirem sem parar, da avó e seus ditados populares e de tudo o que já absorveu durante a vida até esse momento. O verdadeiro material do tradutor é esse caldo gigante de aprendizado, conhecimento e, principalmente, experiências. Uma tradução feita por determinado tradutor nunca, absolutamente nunca, vai ser igual à de outro tradutor, porque, de novo, envolve escolhas, subjetividades.

Um programa de tradução automática aprende, por exemplo, que “fuck” pode ir para “caralho” ou “cacete” ou “porra”, mas dependendo do contexto, do personagem e da expressão corporal do ator na cena, o tradutor pode escolher qualquer outra palavra. Não importa a quantidade de possibilidades que o programa tenha em sua tabela, ele não vai conseguir fazer uma escolha adequada, porque falta-lhe a condição humana, a inteligência de verdade, a capacidade de criar quando não sabemos o que fazer.

A preocupação real seria a da imposição dessas tecnologias pelos grandes canais de streaming, na intenção de redução de custos. O tradutor teria que se tornar um “adaptador”, consertando as escolhas mecânicas da tradução automática, mas todos sabemos da inviabilidade disso. Um tradutor profissional preferiria sempre começar do zero. Isso mexeria culturalmente com determinados países e seria um retrocesso sem precedentes para um arte que está sempre em evolução, que é a dublagem.

Portanto, caros colegas, tomem uma gelada, peçam um escondidinho de carne seca com cheddar banhado em Guinness e tranquilizem-se, porque a Inteligência Geral Artificial ainda é hipotética. E não se esqueçam, tradução é arte.

Athlete A review – the scandal that rocked the sporting world – The Guardian Review

The shocking story of how USA Gymnastics doctor Larry Nassar abused the girls and young women in his care is explored in Netflix’s grim new documentary

Lucy Mangan

Lucy Mangan @LucyMangan

Wed 24 Jun 2020 13.47 BSTLast modified on Wed 24 Jun 2020 15.20 BST

The US gymnast Maggie Nichols
 The US gymnast Maggie Nichols reported her abuse in 2015. She is one of many of Nassar’s victims to tell her story in Athlete A. Photograph: Netflix

There will be a lot to write about when this godforsaken era finally passes into the history books, but I hope the chroniclers will find space for at least a footnote somewhere to record the phenomenon of streamable documentaries as the early 21st century’s best method of delivering us from evil.

Athlete A (Netflix) lays out the story of how, after at least two decades of abusing the girls and young women under his care as the doctor for the women’s programme of USA Gymnastics, the national governing body for the sport, Larry Nassar was eventually caught. The title refers to Maggie Nichols, who reported her abuse to the authorities in 2015 and was dropped from the 2016 Olympic team shortly afterwards. She and her parents tell their story in the film.Advertisement

Marisa Kwiatkowski, an investigative reporter for the Indianapolis Star, was looking into the issue of the under-reporting of sexual abuse by schools, when one of her sources suggested doing the same for USA Gymnastics. The paper started doing so in August 2016 and the film cuts deftly between footage of the shiny, smiling Olympic team at the Rio Olympics that year and the evidence being uncovered by Kwiatkowski and fellow reporters Mark Alesia and Tim Evans, under the watchful eye of their editor Steve Berta.

When the story broke about the organisation’s policy of not passing on any complaints of sexual misconduct to the police (54 coaches had allegations made against them over 10 years), the former gymnast Rachael Denhollander sent the paper an email. She said they would probably be covering up for Larry Nassar, too.

Two more women – Jessica Howard and 2000 Olympian Jamie Dantzscher – got in touch independently. “We were stunned,” says Berta. And they got to work. It was the kind of work that required Evans to research among doctors whether there was any possible kind of injury a young gymnast could suffer that would require vaginal or anal digital penetration by her doctor as a routine procedure. There is not.

The film’s directors, Bonni Cohen and Jon Shenk, use the stories of the survivors (testimonies from victims eventually numbered in the hundreds) as the spine of the film. The victims’ suffering and courage leads to a wider exploration of the culture that enabled Nassar to operate with impunity, by showing that the problem does not lie with one monstrous man but spreads far wider.

As ever, money was apparently a factor. According to his detractors, the president of USA Gymnastics, Steve Penny, prioritised the protection of a lucrative brand over addressing complaints through proper, public channels.

But perhaps of even more use to Nassar was what former gymnasts now consider to have been a physically and emotionally abusive training regime under Béla and Márta Károlyi. They had honed what were widely felt in the gymnastics community to be merciless methods under the Ceaușescu regime and defected to the west to capitalise on the 1976 Olympic success of their most famous “product”, Nadia Comăneci. The girls were perfect fodder for a predator like Nassar, seemingly the only friendly adult in their highly constrained lives.

Blind eyes, tacit acceptance of the status quo and complicity seemed to be everywhere, the perfect storm that gathered with the girls at the centre of it. Eventually, the public scandal led to Nassar’s conviction, with more than 260 women and girls saying they were assaulted by him. He will spend the rest of his life in prison.

Like other documentaries such as Surviving R Kelly, Leaving Neverland, Untouchable (about Harvey Weinstein), Jeffrey Epstein: Filthy Rich and others before it, Athlete A makes you wonder. About the concentric rings of protection that evildoers are able to build so effortlessly around themselves. About what the world would be like if so much joy, energy and innocence were not sapped from it by men who feel entitled to destroy it to sate their own personal appetites. About why so many of these documentaries are also about the chance formation, at last, of an unbroken chain of good people who insist on seeing justice done instead of the smooth operation of a system unfit for purpose.

Above all, though, it makes you wonder about men and power – does it corrupt, or do the corrupt seek it for further gratification of their desires? And why are they so willing to protect each other, however high the toll of misery paid by their victims.